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Precisamos falar sobre a relação família-escola

Homem desenhando com uma criança

Turma do Jiló

Por Pâmela Martins Tezzele [1]

A relação família-escola tem sido tema presente e recorrente de debates nos mais variados âmbitos da sociedade. Por ser assunto que abre ampla gama de vertentes, por não poder ser naturalizado e por não haver consenso sobre a sua definição, tem sido, também, tema de pesquisas de diferentes áreas do conhecimento, principalmente, da Psicologia, do Direito, da Educação e das Ciências Sociais.

Ao pensar no título para este breve texto — que tem como intuito propor uma reflexão sobre temas atuais em educação e, de forma geral, sobre algumas características da sociedade contemporânea que se expressam pelas relações interpessoais — primeiramente, pensei em utilizar a palavra “parceria” para tratar da relação família — escola. Imediatamente corrigi meu pensamento, afinal, “parceria” também não é algo naturalmente dado, mas sim construído. E quando se fala em construção, em desenvolvimento, é preciso haver uma base sólida, uma intenção, um projeto comum e objetivo, um pacto.

Para entendermos essas relações no plano prático, primeiramente é preciso deixar de lado o ideal de escola, o ideal de família, o ideal de sujeito e não romantizar as relações humanas mesmo no âmbito da educação. Há que se considerar tensões, disputas por poder e divergências de interesses, afinal, cada ator costuma ter um entendimento a partir da posição que ocupa: pais, professores, alunos, psicólogos, legisladores, pesquisadores etc. Não há consenso nem para o entendimento do termo “família”. Segundo Vilhena [3] (sem data), cujo artigo propõe, justamente, repensar o entendimento sobre este primeiro grupo de referência do indivíduo, diz:
A família pode ser pensada sob diferentes aspectos: como unidade doméstica, assegurando as condições materiais necessárias à sobrevivência, como instituição, referência e local de segurança, como formador, divulgador e contestador de um vasto conjunto de valores, imagens e representações, como um conjunto de laços de parentesco, como um grupo de afinidade com variados graus de convivência e proximidade… e de tantas outras formas. Existe uma multiplicidade de formas e sentidos da palavra família, construída com a contribuição das várias ciências sociais e podendo ser pensada sob os mais variados enfoques através dos diferentes referenciais acadêmicos.

Do ponto de vista legal, também há um entendimento sobre este grupo de responsáveis, seus direitos e deveres. Este entendimento é produzido culturalmente, ao mesmo tempo em que também serve de referência ideológica e prática. Está na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, que as escolas têm a obrigação de se articular com as famílias e os pais têm direito a ter ciência do processo pedagógico, bem como de participar da definição das propostas educacionais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — que entende que os indivíduos menores são responsabilidade de TODOS: “a responsabilidade da construção da rede de proteção à criança e ao adolescente é tarefa de todos e responsabilidade de cada um. O fortalecimento da rede de proteção começa com o apoio às famílias, ao núcleo familiar e sua rede de apoio aliado às instituições de proteção. O compromisso que se inicia no seio familiar deve também ser abraçado por todos. Compromisso prioritário da sociedade e do estado” (ECA — apresentação) — reconhece a existência de três espécies de família:

· Família Natural: assim entendida a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes (art. 25, caput, ECA);
· Família Extensa: aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade (art. 25, parágrafo único, ECA);
· Família Substituta: para a qual o menor deve ser encaminhado de maneira excepcional, por meio de qualquer das três modalidades possíveis, que são: guarda, tutela e adoção.

Já o Artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que serviu de inspiração e de ponto de partida para os textos legais que versam sobre família, educação e inclusão social, institui que:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Se por parte da escola como expressão social não há e nem pode ou deve haver “consenso” e definição, a priori, de família, o contrário não seria incoerente? Isto é, deveria haver definição de escola como se fosse possível enquadrar um organismo “vivo” e dinâmico, formado por “células” distintas, sob uma única perspectiva? Parece injusto. No entanto, é possível pensarmos nessa instituição por elementos que vêm se perpetuando através do tempo e que não só nos permitem identificar e chamar de “escola”, como também de lhe atribuir uma imagem ideal.

Sobre tais elementos que ajudam a pensar na tríade Família — Estado — Escola, Tezzele (2018), no prelo, com base em Elias (1994), afirma que a estrutura bem definida onde nascemos, ainda que de forma implícita, será determinante no modo de vida que levaremos. Contamos com possibilidades limitadas de escolhas e precisamos nos moldar a determinados padrões, estes por sua vez, permeados/determinados pelos pais, escola, comunidade. Há laços (de afeto, trabalho, propriedade) visíveis e invisíveis que unem as pessoas próximas a nós e aos estranhos com os quais cruzamos na rua. O contexto funcional e sua estrutura específica são externos e internos às pessoas, e aí está a complexidade de compreender esta dinâmica, cujas próprias mudanças obedecem a restrições e limites.

Segundo Elias (1994), é a interdependência de funções específicas de uma sociedade, o principal eixo para o entendimento das relações, estrutura e tensões de determinado contexto. Esta rede de funções (com leis próprias) não é determinada pela vontade das pessoas, há uma estrutura rígida de instituições permanentes de controle social, formada por sua vez, por meio de decisões, votações, imposições, acordos e movimentos históricos que vieram ao longo do tempo moldando esta estrutura social (em parte herdada) que conhecemos hoje e que difere de outras sociedades pertencentes a outros lugares, em outros tempos. A escola é um elemento central nessa dinâmica de perpetuação de elementos culturais e valores.

Para Elias (1994), é esta cadeia de dependência funcional, cujas correntes são invisíveis, mas, tão fortes quanto as de uma prisão real, que prendem as pessoas umas as outras, o que chamamos de SOCIEDADE. Esta estrutura social é regida por “leis sociais” que, para ele, são as “leis autônomas das relações entre as pessoas individualmente consideradas” (p.23). Segundo o autor, para compreendermos a relação singular entre indivíduo e sociedade, é preciso pensar na estrutura do todo para se compreender as partes individuais, ou seja, por mais que certos fenômenos sejam distintos em muitos aspectos, há fatores comuns, compreensíveis sob a ótica das relações e funções entre os indivíduos (exemplo: uma dança executada por vários bailarinos, cada um com a sua função). O que liga as pessoas socialmente é a “propensão fundamental de sua natureza” (p.26), cuja imagem mais fiel deste processo de integração entre os indivíduos, deve ir além de uma revisão de “hábitos mentais”, se faz necessário uma “revisão de toda composição tradicional de autoconsciência” (p.26), em grande parte, “formada” e “conformada” pela educação familiar e institucional (formal).
No entanto, nem sempre os objetivos, os métodos e a compreensão do processo são percebidos de forma afinada entre os envolvidos.

Segundo Tezzele (2017), no prelo, com base em Dubet e Martuccelli (1998), estes autores se ocuparam de relacionar mudanças ocorridas na socialização com as transformações ocorridas nas últimas décadas no sistema educacional. Eles enumeraram três exigências — onde escolas e famílias parecem atuar — as quais os alunos são submetidos: formação de um projeto (indivíduo útil socialmente), integração social (que os autores consideram “inigualitária”, tendo em vista que trajetórias são diferentes para indivíduos diferentes) e formação da subjetividade (aumento da capacidade de dominar situações).

De forma resumida, eles enumeram como sendo funções e características da escola:
· Reprodução social;.
· Produção de qualificações/níveis de competência;
· Transmissão de herança cultural;
· Adaptação ao meio econômico;
· Produção de indivíduos — atitudes e disposições (modeladora de personalidade por meio da aquisição de conhecimento, valores comuns/ação pedagógica);
· Autonomia do indivíduo incorporação — valores universais — socialização;
· Instituição regida por normas de funcionamento.

Eles apontam, no entanto, uma visão crítica da escola moderna, considerando mudanças sociohistóricas, destacam-se alguns pontos que podemos atribuir aos conflitos família — escola, aluno — família, aluno — escola:

· Representação da escola e suas funções não correspondem mais às práticas sociais.
· Relação não harmônica da formação de atores com o funcionamento regrado da instituição.
· Desregulamentação das situações escolares — experiência — vertente subjetiva.
· Compreensão do “produto da escola” precisa ir além do aspecto técnico (programas e métodos).
· Considera as relações, significações e estratégias dos alunos.

Ainda com base Dubet e Martuccelli (1998), Tezzele (2017), no prelo, afirma que são três — difíceis, controversas e, potencialmente geradoras de conflito — as principais funções da escola: distribuição (hierarquização, critérios, qualificação, competências…); função educativa (com base em um projeto de sujeito ideal) e integração (relações estabelecidas, vida intra — escolar e extra- escolar).

É nessa dinâmica bastante complexa de formação das novas gerações, transmissão de um legado de conhecimento, regras, códigos ético-morais historicamente acumulados e preparo para o mundo do trabalho, que se situam as relações humanas, isto é, estas não podem ser pensadas de forma deslocada desse “caldeirão” de interesses.

Em entrevista em 2004 [4], o professor Lino de Macedo, estudioso de Jean Piaget, afirma que a construção/aquisição do conhecimento enquanto processo revela-se, pouco a pouco, como descoberta daquilo que já é conhecido no plano social, por exemplo. O que é construção se expressa, na prática, como invenção de estratégias ou recursos para aprender. Essas afirmações reafirmam a importância do primeiro grupo, a família, enquanto provedor do primeiro arcabouço de referências que permitem ler o mundo.

Na prática, mais ainda com os diferentes papéis que a escola vem assumindo (e aqui não se pretende adentrar nessa seara, nem emitir juízo de valor), tem sido bastante difícil separar instrução de valores. E será que devem ser separados? A entrevista do professor Lino de Macedo nos ajuda a refletir. Diz ele: (…) de um lado a criança e seu processo de desenvolvimento (tal como entendido e estudado experimentalmente por Piaget) e, de outro, a escola e sua função de iniciar os alunos nas artes e nas ciências, sobretudo em matemática e em língua portuguesa. Trata- se, portanto, de uma visão interdisciplinar e psicopedagógica do conhecimento.

Interdisciplinar, porque disciplinas, discípulos e docentes são considerados como partes interdependentes, isto é, irredutíveis, complementares e indissociáveis. Psicopedagógica, porque a didática (os conteúdos e os modos de ensinar, bem como as características daqueles que se responsabilizam por sua transmissão) é considerada em relação (ou seja, tanto quanto possível de forma não-dualística) às crianças que aprendem e aos contextos socioculturais (família, classe social, etc.) a que pertencem e que definem, em parceria com a escola, as significações desta aquisição para elas.

Não podemos deixar de destacar o papel especial dos familiares de crianças com deficiência nessa dinâmica relacional com a escola. Smith (2008) lança um olhar muito sensível ao pontuar que estas tem um papel fundamental no desenvolvimento destas crianças. São estes membros próximos — e ela enfatiza a figura materna — que desenvolvem a sensibilidade para atender as solicitações dos filhos, repetem e reformulam a comunicação o quanto for necessário, ajudam no desenvolvimento de habilidades gerais (motoras, de comunicação, sensoriais, de alimentação e necessidades básicas), são o alicerce das primeiras e fundamentais interações sociais e afetivas. Mas, você pode estar se perguntando, “Ué, mas em todas as famílias não é assim?”. Não, não é. Estas famílias precisam superar, diariamente, barreiras arquitetônicas e atitudinais. Passam por estresses indescritíveis, difíceis de compreender por quem está de fora. Mais do que pelo sucesso acadêmico, tão reivindicado pela maioria dos pais de crianças típicas, muitas dessas famílias ainda lutam por aceitação, por acolhimento, por pertencimento, por igualdade de oportunidades de aprendizado. Essas famílias também precisam ser acolhidas, não só pela escola, mas por TODA a sociedade.

A fim de situar a discussão num plano mais “cotidiano”, toma-se como base e se reproduz falas recorrentes nas escolas e nos grupos de adultos responsáveis. Propõe-se o exercício de não julgamento e explica-se que as falas são generalistas e ilustrativas. O intuito é levar à reflexão e, que sabe, à identificação :
Da perspectiva da Escola:
· A gente tem todo o conteúdo para dar e ainda precisa fazer o papel de dar a educação que os pais não dão em casa;
· Quando é para cobrar eles vem bater na nossa porta, mas na hora de fazer a parte deles em casa, frequentarem as reuniões ou aparecerem quando são chamados para falar sobre os filhos, aí não aparecem;
· O problema é que os pais tiraram toda a autoridade do professor e as crianças não sabem mais lidar com os pequenos fracassos, temos que passar a mão na cabeça;
· Na escola privada é pior ainda, a educação virou mercadoria, os pais acham que podem fazer o que querem porque estão pagando;
· O problema é a desestruturação das famílias, problemas sociais que causam prejuízos terríveis que afetam o aprendizado das crianças e dos jovens;
· O problema é a qualidade do tempo que se passa em família. Além da falta de tempo e da correria do dia a dia, quando se está junto é só celular e computador, ou as tarefas excessivas que todos acumulam e ainda levam para casa. As pessoas estão perdendo a capacidade de dialogar;
Da perspectiva dos Pais:
· “Os professores só sabem cobrar que a família não faz sua parte em casa. E eles lá sabem como é a dinâmica do dia da gente para exigirem que a gente ainda retome o conteúdo que eles ganham para ensinar?”;
· “Chegar na escola é se sentir julgado e incompetente enquanto responsáveis. Têm sempre uma crítica e uma culpabilização no ar;
· Se eles que são escola, um ambiente cheio de regras e com uma estrutura naturalmente disciplinadora não dão conta, imagina nós, pais, que trabalhamos o dia todo, chegamos em casa exaustos e mal conseguimos acompanhar o que eles fazem na internet e com quem se relacionam;
· Eu me importo mais com que estão colocando na cabeça dos jovens do que com essa coisa de desempenho e disciplina que a escola tanto valoriza. A escola tem que ser uma extensão dos valores do lar;
· Eu largo meu filho/ a na escola e não sei o que vou buscar. Os professores perderam totalmente o controle e há muita violência no grupo de pares.

Nós, da Turma do Jiló, gostaríamos de ressaltar a importância do diálogo e do conhecimento dos direitos e deveres de cada uma das partes. Por entendermos que nenhum mediador de conflitos é mais eficaz do que “sentir a dor do outro”, retomamos um trecho de um texto produzido anteriormente: “Precisamos falar sobre Empatia”. Nele tratamos do sentido da palavra EMPATIA — habilidade de imaginar-se no lugar de outra pessoa, compreender sentimentos, desejos, ideias e ações de outrem. Qualquer ato de envolvimento emocional em relação a uma pessoa, a um grupo e a uma cultura — e da urgência não só de falarmos sobre, mas de exercitarmos nossa capacidade de sermos empáticos.
Encerramos esta reflexão com o desejo de que os conflitos existam, mas que sejam saudáveis e levem ao crescimento, e que nesse ambiente de melhoramento e repensar constante, que a parceria família-escola, de fato, se estabeleça, cresça e se fortaleça.

[1] Licenciada em Educação Especial — Hab. em DI. Especialista em Gestão Educacional. Psicopedagoga. Doutora em Educação. Membro da Equipe Pedagógica da Turma do Jiló.
[2] A título de esclarecimento, nesse texto, parte-se do pressuposto de que “família” é toda e qualquer configuração ou arranjo de indivíduos adultos que detém a tutela de indivíduos menores de idade e que, portanto, por eles são responsáveis e provedores de recursos materiais e emocionais.
[3] Junia Vilhena, Psicóloga que se baseou, dentre outros autores, em Donald Woods Winnicott — pediatra e psicanalista inglês — para pensar no papel da família na formação dos sujeitos.
[4] Para a revista Psicologia Escolar e Educacional On-line version ISSN 2175–353 Psicol. Esc. Educ. (Impr.) vol.8 no.2 Campinas Dec. 2004 http://dx.doi.org/10.1590/S1413-85572004000200013
Referências:
DUBET, François & MARTUCCELLI, Danilo. Sociologie da l’experince scolaire: L’orietación scolaire et professionelle. INETOP, Paris, n.2, abr/mai, 1998, pp.169/178.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos (1939) pp. 11 a 60. IN: ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro (1994) — Jorge Zahar Editor .
SMITH, Deborah, D. Introdução à Educação especial: ensinar em tempos de inclusão. Artmed. Porto Alegre, 2008.

Sites consultados:
https://vinniciuxdeux.jusbrasil.com.br/artigos/225367648/educacao-dos-filhos-a-familia-a-lei-e-as-suas-obrigacoes

http://www.scielo.br/pdf/pee/v8n2/v8n2a13.pdf

http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0229.pdf